2.2. ESCRITA E ORALIDADE

A compreensão da escrita como um sistema de representação da fala pressupõe uma dupla consciência, conforme COLELLO (1995).
Em um primeiro momento, o indivíduo deve perceber a estreita relação entre a oralidade e a escrita. Embora esta seja uma idéia bastante óbvia para o adulto alfabetizado, ela não é um consenso entre as crianças pequenas, que costumam buscar na palavra escrita algum indício do objeto. O entendimento de que o simbolismo das letras independe do objeto resulta na descoberta de que a escrita é o "desenho" das palavras, isto é, da sua estrutura sonora.
Mas, de acordo com COLELLO (1995, p.23), a compreensão do caráter fonético da escrita não garante o pleno domínio sobre o sistema. Esse é, por exemplo, o caso da criança que escreve "HTA" para designar "A GATA". Na tentativa de representar o som, ela fracassa justamente por não compreender uma particularidade do sistema (o valor fonético do H).
Ainda que vinculada à oralidade, a escrita tem a sua própria história, cujo desenvolvimento é dado, pela percepção de que fala e escrita são sistemas relativamente autônomos, com características próprias, servindo a diferentes (ou alternativos) propósitos. Sendo assim, de acordo COLELLO (1995, p.23), a criança deve, num segundo momento, compreender a diferença, as particularidades e a distância entre esses dois sistemas de linguagem. Uma vez descartada a hipótese da escrita como pura transformação sonora da fala, resta compreender a natureza e o funcionamento próprios de novo sistema de representação.
Nesse sentido, vale a pena lembrar a seguinte passagem de Vygotsky (1987) citado por COLELLO (1995, p.24):

Nossa investigação mostrou que o desenvolvimento da escrita não repete a história do desenvolvimento da fala. A escrita é uma função lingüística distinta, que difere da fala oral tanto na estrutura como no funcionamento. Até mesmo o seu mínimo desenvolvimento exige um alto nível de abstração. Ao aprender a escrever, a criança precisa se desligar do aspecto sensorial da fala e substituir palavras por imagens de palavras. Uma fala apenas imaginada, que exige a simbolização de imagem sonora por meio de signos escritos (isto é, um segundo grau de representação simbólica), deve ser naturalmente muito mais difícil para a criança do que a fala oral. Nossos estudos mostram que o principal obstáculo é a qualidade abstrata da escrita, e não o subdesenvolvimento de pequenos músculos ou quaisquer outros obstáculos mecânicos.

Mais que uma aprendizagem de habilidades, conceitos ou regras, o alfabetizando deve conquistar uma consciência metalingüística (a partir daquilo que ele já domina) e construir uma nova relação com a fala interior de modo a conciliar seus processos mentais às exigências da escrita (a gramática, a sintaxe e a plenitude da sua atualização), sem, com isso, perder de vista o seu objetivo fundamental, que é a comunicação. Se o que priorizamos é a escrita como compreensão do mundo, não há como negar a necessidade de sintonia entre o pensamento e a linguagem nem a mediação entre o falar e o escrever (COLELLO, 1995, p.24).
Franchi (1988) citado por COLELLO (1995, p.24), constatou que é vendo a sua fala registrada no plano gráfico que a criança desperta para a compreensão da natureza da língua escrita, motivando-se pela busca dessa nova forma de expressão. Lamentavelmente, são poucos os professores que se valem de tão precioso recurso para o ensino da língua escrita.
Como o objetivo maior da escola tem sido alfabetizar (sem necessariamente despertar a consciência lingüística), as práticas pedagógicas, centradas unicamente nas letras e regras do bem escrever, acabam por desconsiderar as outras formas de manifestação, não se dando conta da relação implícita entre elas. E,na medida em que não damos espaço à fase de mediação entre oralidade e escrita, complicamos de forma desnecessária o momento já intrinsecamente difícil da alfabetização, visto como interpretação recíproca do alfabetizador e do alfabetizando. É justamente esta fase de mediação que precisa ser fortalecida de várias formas: temos que tentar devolver o gosto e a confiança na oralidade, o prestígio da arte verbal, a discussão dos seus conteúdos, comparados com conteúdos de histórias da tradição oral. Todas estas, e outras, seriam as práticas necessárias para fortalecer ou até mesmo instituir a fase de mediação entre oralidade e escrita. (Gnerre, 1991, p.61) citado por COLELLO (1995, p. 25).
Segundo COLELLO (1995), de modo inverso, o que se vê na maior parte das escolas, é a negação (ou desprezo) pelo dialeto, a cultura e o saber popular, que definitivamente parecem não encontrar espaço nas tarefas em sala de aula. A criança que ingressa na escola traz o domínio da linguagem oral popular e coloquial. A escola direciona todas suas atividades, objetivando a linguagem escrita "culta" e formal, sem perceber que o aporte verbal do aluno é a via mais segura para tal conquista (e para muitas outras). Em outras palavras, o professor "cobra" do aluno exatamente aquilo que ele não tem para dar. Nesse caso, a criança se vê obrigada a abandonar o seu universo em nome de um "não-se-sabe-o-quê". Trata-se de uma imposição escolar que, mediante critérios bastante discutíveis, privilegia determinado saber – o da classe dominante – elegendo-o como o único conhecimento legítimo.
O resultado disso é o fracasso escolar, traduzido pelos altos índices de evasão, repetência, analfabetismo e formas de comunicação absolutamente vazias.
De acordo com COLELLO (1995, p.25), o estudo de Rego (1985), constitui um apelo para que os educadores levem em consideração os aspectos de pensamento e linguagem na fase que antecede a alfabetização. Segundo COLELLO (1995, p.26), na mesma linha de raciocínio, Rocco (1989) aponta para a urgência de redirecionar o ensino da língua materna por meio de uma pedagogia do oral e do escrito. Tal medida requer, por parte dos educadores, a consciência dos diversos modos de expressão e das suas intersecções ao longo do desenvolvimento e aprendizagem. Caso contrário, o "livre trânsito" entre fala e escrita será um entrave mesmo para aqueles que já foram alfabetizados.
Enquanto a linguagem tipicamente infantil (expressa pela oralidade e atitude corporal) for sinônimo de dificuldade, indisciplina e rebeldia, estaremos perpetuando, dentro da própria sala de aula, a formação de "copistas" que, mesmo alfabetizados, são incapazes de usar a língua escrita de modo criativo, inteligente e autêntico.

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