"INTERAÇÕES LÚDICAS E APRENDIZAGEM"






Por Cristina Muniz
"... se a pesquisa é a mãe da tecnologia moderna, podemos admitir a idéia, ainda que paradoxal, de que o progresso e a cultura têm uma origem lúdica".
Martinne M. Bousquet


Este artigo relata a experiência do projeto "Esconderijos" [1], um dos frutos da pesquisa que a brinquedoteca escolar Saci, da Rede Municipal de Ensino/RJ, vem desenvolvendo há 15 anos no sentido de repensar uma prática pedagógica reducionista e exclusiva baseada em um paradigma instrucional, notadamente na educação infantil das camadas populares.
Ao longo destes anos, a brinquedoteca, ao promover ações socioculturais numa perspectiva para além da instrução, tem se chocado com um discurso pedagógico conteudista ainda bastante presente no contexto escolar, e para o qual os professores nem sempre encontram alternativas. Em 1997, uma pesquisa (Muniz [2]) apontou a possibilidade da brinquedoteca escolar como espaço cultural, não só para as crianças usuárias mas também para os professores que as acompanham, ali aonde é possível experimentar a liberdade de jogar junto, em uma relação de proximidade com as crianças.
O projeto " Esconderijos", aborda um dos aspectos desta discussão, relativa a formação de educadores, numa perspectiva lúdica. Desenvolvemos um trabalho de formação em serviço com educadores, arte educadores e terapeutas. Pensamos um caminho metodológico onde a construção de brinquedos e conceitos referentes ao campo do lúdico interagiu com as ações pedagógicas desenvolvidas em um campo de trabalho determinado. Os trabalhos buscaram ser realizados a partir da vivência dos participantes nestes ambientes sociais singulares, propondo "a elaboração de objetos ... a partir da interação entre os interesses ... tanto daquele que faz quanto daquele que usa que, nesse caso, é um colaborador ativo no processo de descoberta do objeto e sua forma", como explicitam os professores Renata Eyer e André Lameirão, do Departamento de Artes e Design da PUC.RIO, nossos parceiros neste projeto.

"Essencial em nossa vida é trabalhar com o que nos motiva, fazendo o projeto costurando nossos interesses com os nossos processos de fazer e de aprender. Porque interesse e entusiasmo são manifestações da sua alegria, e é esse estado do ser que inicia um processo criativo".
(BRANCO, Ana. Metodologia de Projeto, PUC-Rio)
Acreditando neste processo de fazer e de aprender, fomos trançando experiências, saberes, desejos, dialogando com as técnicas e teorias a partir deste trançado, compreendendo, como diz o psicanalista Winnicott, que é no brincar compartilhado que fruímos nossa liberdade de criação.
O campo de estudo da experiência lúdica e de suas técnicas é vasto e vem sendo problematizado desde Platão. No contexto da formação de educadores havia muitas dúvidas quanto à relação entre aprender e brincar. A dicotomia entre interações lúdicas e educativas nos faz escorregar facilmente para o aprender brincando, pois a brincadeira é percebida amiúde como não tendo conteúdo. Quando nossa percepção sobre o brincar se aprofunda, o lúdico vai deixando de ser utilizado como recurso e ganha valor em si, como uma linguagem peculiar do mundo infantil.
Iniciativas lúdicas e culturais sempre afetam de algum modo as pessoas e as instituições, dando pistas de como trabalhar para além da instrução. Assim, embora algumas pesquisas tenham revelado uma didatização do lúdico, percebemos que avanços foram feitos.
"Ao introduzir o lúdico no meu curriculum, me sinto mais leve e solta em relação a eles (alunos)", comenta a professora ao ensinar simetrias e escalas, instigada pela emoção e envolvimento dos alunos quando o lúdico, através das pipas e papagaios, invadiu sua sala de aula.
Outras propostas apostaram na inserção de brincadeiras e brinquedos no cotidiano escolar, com a expectativa de que desta forma o lúdico estaria garantido. Mas, neste caso, ele escapa. O risco aqui é que as ações continuem a ser transformadas em programas a serem cumpridos por um aluno que continua a ser fabricado. E a criança fica mais uma vez de fora da brincadeira!

Perscrutar nossa memória escolar revelou uma experiência quase sempre marcante, que afeta as pessoas quer seja pelo que aconteceu, quer seja pela falta, pelo que não aconteceu. Vamos assim decifrando como o nosso corpo foi sendo ensinado na escola, fragmentado de suas idéias, alienado de seus desejos, perguntando o que e como ele ensina hoje.
A partir de um exercício com imagens [3] evidenciamos nosso conhecimento acerca do lúdico. Liberdade foi uma idéia associada à quase todas as imagens, e organizando os relatos, percebemos que esta e categorias correlatas são toleradas em geral em espaços não formalizados para a aprendizagem.
Parar - sonhar - se desprender do relógio - cada um fazendo uma coisa - bagunça - arte e imaginação - liberdade - luta - queria colocar um ponto final mas não tinha - esportes radicais - desafio - irreverência - conversar - namorar - pegar a estrada sem destino - o corpo fica leve e solto - celebração - fazer - compartilhar - a criança criando o que já existe etc
O jogo de imagens suscitou muitas conversas sobre nossos desejos de fazer coisas. Brincar é fazer, sentencia Winnicott. E se o lúdico é a aprendizagem do desejo, elegemos algumas coisas para fazer, partindo dos desejos externados. Assim, alguns iriam tentar "andar na corda bamba", tomar banho de cachoeira, ler mais poesia, se permitir não fazer nada etc, mas não nos levamos muito "a sério" nesta proposta.
A partir deste jogo e durante todo o processo das oficinas, um conflito marcou nossas reflexões, girando em torno da questão "mas afinal onde acaba a bagunça e começa o lúdico?! Presente em vários ambientes de trabalho, este conflito é geralmente expresso por críticas do tipo: não vai dar conta de ensinar; tem os conteúdos para cumprir; está soltando demais depois não vai controlar; há muita algazarra que interfere no ambiente etc.
Ao mesmo tempo em que os educadores traziam esta questão, não se mostravam satisfeitos com a forma como seu trabalho caminhava. "Uma boca sempre aberta com os olhos fechados...", foi a imagem encontrada em um trecho de Winnicott (1979), para ilustrar esta insatisfação, onde o autor reflete sobre práticas educativas autoritárias.
No trabalho de uma psicopedagoga este conflito se revela na relutância em levar adiante uma proposta de construção de um brinquedo que expressasse seu processo. Aí vieram os panos.
( Fátima) " A primeira experiência feita foi trabalhar com olhos vendados para favorecer outras dimensões sensoriais, na tentativa de facilitar o contato corporal e a identificação de cada um. Num segundo momento recebi o grupo com vários tecidos espalhados pelo chão. Não tive tempo de sugerir nenhuma atividade, pois eles simplesmente se enrolavam e rolavam pelo chão. Se cobriam e se abraçavam e um dos mais agitados e resistentes às propostas do grupo vinha sempre coberto pelos panos abraçar fortemente todos na sala. Gritando e brincando, se lembravam de várias brincadeiras ... "
Os panos podem ser excelentes objetos/brinquedos não estruturados, macios e de fácil manipulação que remetem ao encontro, ao afeto. Panos que soubemos depois saíram da casa da Fátima, alguns eram colchas das camas, outras cangas de praia que foram oferecidas às crianças num gesto de coragem e generosidade.
Como disse a Fátima em seu relato "deixando de lado os conteúdos e objetivos que desejamos alcançar na relação com a criança, devemos entrar na brincadeira e usufruir com eles suas conseqüências. Pois o ato de brincar e o ato de aprender, seja no real ou no imaginário, sempre pressupõe uma relação com outra pessoa, sempre brincamos com alguém e sempre aprendemos com alguém."
Em outros trabalhos também ficou claro esse desejo de aproximação com o mundo infantil, via de acesso possível ao lúdico. Encontrar a criança "por detrás do aluno" é decompor o ritual espaço temporal e afetivo presente na escola.
A Sandra que construiu o brinquedo ,"os pedacinhos do céu", na tentativa de "ver meu aluno pelo lado que ele não aparece", mergulhou nesta viagem.
(Sandra) "queria conhecer mais um pouco o meu aluno, esta caixinha de surpresas".
(André) "aí você começou a pensar no que chegou no final, a conexão com o desejo, o que cada um pode chegar aproveitando a oportunidade de se manifestar desejos que não falam normalmente, não explícitos".
(Sandra) "diante dos brinquedos testados descobri que precisava de um brinquedo que desvendasse um pouco os segredos contidos nas diferentes caixinhas surpresas, os alunos. Então a minha grande questão era essa: conhecer um pouco mais o meu aluno"
Outra aprendizagem discutida a partir do trabalho da Sandra foi a questão da técnica não se sobrepondo à ação significante, mas o inverso, a ação determinando o uso das técnicas. Neste sentido, não importa tanto o brinquedo, mas o fato da ação lúdica acontecer. Como no processo da Sandra, onde o seu brinquedo "pedacinhos do céu" é resultado da ação dela ter se permitido jogar com seus alunos.
(Sandra) "senti um resultado na afetividade, porque conheci mais meu aluno, a interação ficou mais solta, a comunicação entre nós... eu já faço parte do grupo, eles agora me contam coisas que antes não contavam".
Assim também a Marisa, ao perceber "o mosaico de emoções e informações" nos desenhos dos seus alunos, ampliou sua leitura deste mundo infantil e resignificou sua prática pedagógica. A Marisa levantou a importante questão de pensar junto com o outro, e não somente sobre o outro, deslocando sua posição de poder nesta relação.
A Luiza pesquisou a idéia de que as crianças da favela imaginam pouco porque são carentes de muitas coisas. Ao trabalhar sua observação atenta do brincar livre "fui percebendo que eles tinham muitas histórias pra contar... na casinha da boneca observei que eles fantasiam e resolvem até muitas questões, me demonstram que dominam vários códigos que em outras situações não revelam".
A Ana Lúcia tratou de uma questão semelhante. Por trabalhar numa escola de crianças muito comprometidas, lidou o tempo todo com o conflito da diferença e da frustração inerente à relação educativa, se perguntando o que poderia ensinar para crianças que mal se comunicavam.
"Mas afinal como funciona esta pessoa?" Era uma pergunta recorrente no processo da Ana, que foi um diálogo constante com a sala de aula e suas crianças.
( Ana) Confeccionei diversos aros de diversas texturas, cores e recheios como sementes, bolinhas de gude, contas, areia e ervas aromáticas. Cada aluno fazendo uso do objeto da forma que lhe é mais conveniente e possível, constrói, a cada momento um novo brinquedo, de acordo com seus interesses individuais. O brinquedo está aberto as funções que lhe são atribuídas na brincadeira, por exemplo: D. brinca de morder e puxar; G.V. sacode puxa coloca os dedos; G. F. passa a mão e sente. Temos vários brinquedos em um só. Brinquedos de: olhar, pegar, querer, morder, rejeitar, escolher, vestir, brincar junto, brincar da mesma coisa e brincar sozinho."
(Felipe) "o método de pesquisa da Ana foi da superfície para a profundidade, estreitando os recortes para ir mais fundo".
(André) "quando ela aprofunda a atenção ela se multiplica e isso aparece no brinquedo dela"
(Ana) "aprendi o que é possível a partir da intuição e do afeto... como se vai ajudando na construção da subjetividade quando você vai trazendo o mundo para o outro conhecer... ela (sua aluna) foi me dizendo, do jeito dela, do que gostava e do que não gostava, e nesse processo foi se conhecendo também".
A Luiza Machado com seu brinquedo e sua pesquisa nos fez refletir sobre a importância, por um lado, do cuidado com a ambiência, "definir um espaço onde as coisas acontecem", e a não definição a priori na ação lúdica. Como comentou o André, "meia definição ela dá, meia definição dá quem brinca".
(Luiza Machado) "Fui me sensibilizando para trabalhar mais com o lúdico, em sala de aula, percebendo o quanto é necessário colocar em jogo o poder absoluto do professor através da coragem e humildade para correr riscos. Construí modelos e experimentos que foram reformulados a partir de testes e observações ...

... o último protótipo do Era uma vez ...., focalizou a utilização que a criança dá ao objeto.
A indefinição das peças de madeira e personagens potencializam a criatividade, a sensibilidade, a exteriorização de conflitos, a vontade de descobrir, o abandono das práticas de reprodução. A invenção livre de histórias faz a criança sentir-se autora de seu trabalho, desenvolvendo imaginação, talento e auto-confiança. "

Penso que o educador, quando toma para si a intencionalidade de sua ação educativa, ao mesmo tempo em que se liberta, se compromete e dá sentido à sua prática. Nessa tensão vai elegendo um caminho, e na impossibilidade de esgotar o conhecimento, aprofunda-o. Desta forma se descola do paradigma "conteudista", que encerra a ilusão de poder abarcar tudo. E aí, como disse o André, multiplica.
Nosso objetivo era facilitar a experiência lúdica através do desenvolvimento de um olhar mais atento, da disposição para a pesquisa, para o incerto, para novas relações com o tempo/espaço de aprender e ensinar. Neste contexto nossa utopia foi vislumbrar uma educação que se confunde com a vida. Ou, como propõe Souza (1994), "uma nova ética do olhar e uma nova estética na constituição de nossa subjetividade ... base de uma ciência dos valores da ação, da expressão, da emoção e da criação humanas".
O primeiro contato com o tema do lúdico é muitas vezes impregnado de um olhar didatizado. Tentamos cuidar para não cair na armadilha de propor uma pedagogia do jogo, ainda que se aceite que o jogo educativo tem seu lugar.
A tendência de procurar o lúdico em si é outra armadilha a driblar. Ele acontece no jogo jogado, e é a atitude de jogador que precisa ser cultivada. Visto desta forma, podemos dizer que o fato de se oferecer brinquedos, criar uma brinquedoteca, propor atividades artísticas e culturais... não garantem por si só o lúdico. Sabemos que estas ações enriquecem o espaço escolar e que o lúdico, com a cumplicidade das crianças, invade. Mas isso é outra história.
Outra renúncia que se anuncia, numa educação que se pretende "preparação para existir no mundo"( Bousquet), é a do desejo de que o jogador/aluno aja como o modelo proposto. A domesticação, produto das relações de poder presentes no discurso pedagógico, é logo colocada em xeque.
O gesto espontâneo, a liberdade de agir, criar, fazer coisas é, antes de mais nada, suporte do sentimento de segurança para investir positivamente na vida, e assim, viver criativamente. A expressão espontânea promove a relação do corpo com o sentimento e o lúdico configura-se aí, campo de aprendizagem do desejo, força impulsora de nossa curiosidade para a vida.
" este impulso que pode ser considerado algo em si, mas também algo que se faz presente quando qualquer pessoa - bebê, criança, adolescente ou velho - se inclina de maneira saudável para algo, ou realiza deliberadamente alguma coisa" (Winnicott, 1975).
Ponderamos que se o gesto espontâneo é reiteradamente controlado, alienado também do diálogo que possibilita torna-lo relacionado com o grupo, estamos construindo relações de isolamento social e submissão, em detrimento daquelas de proximidade e autonomia.Desta forma, falar do lúdico no contexto educacional é talvez, principalmente, falar das relações de poder, conforme o projeto escolar em questão.
Se o projeto é de uma educação cidadã, ponderamos que o adulto envolvido com a criança assuma um lugar de dentro da relação, se assombre junto e permita que ela se surpreenda a si mesma. Winnicott (1975) postula para esta mediação o difícil equilíbrio entre a interdição por um lado e a invasão por outro, reconhecendo o caráter assustador que a liberdade pode ter.
Comumente associado a idéias de liberdade e gratuidade, polarizadas com o mundo da não gratuidade, o lúdico ganha contornos mais complexos quando pensado enquanto espaço intermediário. Entre o caos e a geometria, a ordem e a desordem, o impulso e a reincidência, o sério e o não sério, parece que nos defrontamos com uma dialética indissolúvel. Provocar uma reflexão sobre o lúdico pode ser então questionar o mundo, a vida e a educação do ponto de vista desta dialética. Sobre este problema, que nos acompanhou durante todo o processo, Bousquet afirma:
"Se me parece que a vocação mais particular do homem seja a de jogar (brincar), seu jogo se desenvolve no mundo do sério, retornará ao sério e ressurgirá do sério. A aceitação desta situação é, também, a aceitação da gratuidade e do absurdo... aceitando isso o real se torna mais compreensível na sua totalidade e a vida mais lúdica" (1987)
A experiência deste terceiro, como o poder de voar no céu e a fertilidade de criar na terra, as crianças nos ensinam com sua alegria, quando soltam suas pipas no ar:
" Ah, é tão bom soltar uma pipa, pena que esse dia estou na escola" fala da Tamires, aluna do Ciep de Ipanema.
Tenho aprendido sempre, com estes especialistas do lúdico, a fazer da educação um espaço de poder "soltar pipa" também.
As educadoras cujas pesquisas foram citadas neste artigo:
Ana Lúcia da S. Cunha
Luiza Helena Serimarco
Luiza Machado Faller
Maria de Fátima L. de Moraes
Marisa Cabral
Sandra C. Ribeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOUSQUET, M.M. (1987). L Experience Ludique. Paris: Seuil.

JOBIM e SOUZA, S.(1994). Infância e Linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. Campinas,SP: Papirus.

WINNICOTT, D.W. (1975). O Brincar e aRealidade. Rio de Janeiro: Imago
--------------------------(1979). A Criança e seu Mundo. Rio de Janeiro: Zahar.






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